segunda-feira, 26 de setembro de 2011

A Reavaliação dos Fatos no Juízo da Apelação


Clito Fornaciari Júnior
Advogado; Mestre em Direito.

 

Todas as decisões que são proferidas em um processo guardam, do ponto de vista formal, certos pontos comuns, que são bem resumidos por Chiovenda, destacando que elas devem conter "a exposição precisa do estado da questão resolvida e do trabalho mental realizado pelo juiz", devendo ter, pois, um dispositivo, o teor dos pedidos das partes e os motivos de decidir, de fato e de direito (Instituições de Direito Processual Civil, tradução da 2ª edição italiana, Saraiva, 3º vol., 3ª edição, 1969, nº 302, p. 32). Ao encontro desse reclamo dirige-se o art. 458 do Código de Processo Civil, apontando o que trata como "requisitos essenciais da sentença".

Essa estrutura não é diferente também nas decisões (sentenças) colegiadas, apenas apresentando-se a particularidade quanto à formação da vontade colegial. Nelas, portanto, não se prescinde, por exemplo, de enfrentar e externar os motivos da decisão, tanto no que diz respeito aos fatos, como ao direito. Se o arcabouço das decisões é sempre igual, há de se considerar como regra a exigência de explicitação e o enfrentamento por todas elas do quanto exposto na expressiva síntese retratada em Chiovenda, admitindo-se ressalvas somente se expressamente forem colocadas por lei, que estariam, pois, a restringir o âmbito das questões passíveis de serem enfrentadas em outras instâncias, rompendo, assim, com o normal lançado como regra de decidir e mostrar o decidido.

Presentes essas premissas, que se revelam até elementares, e considerando a inexistência de qualquer restrição legal quanto ao âmbito do recurso de apelação, é preocupante o que foi decidido em julgado da 34ª Câmara de Direito Privado do TJSP, que, diante de questionamento sobre decisão de questão de fato, firmou que "a verificação da necessidade da produção de qualquer prova está a cargo do Julgador. Somente ele (juiz), pelo livre convencimento diante dos elementos existentes nos autos, pode estabelecer se é o caso de instrução ou de julgamento antecipado", concluindo, pouco mais à frente, que, se veio a sentir-se o magistrado habilitado à entrega da prestação jurisdicional ante as provas realizadas, ele cumpriu o art. 330, não se verificando nisso cerceamento de defesa (cf. apelação 992.05.019118-6, Rel. Irineu Pedrotti, julgamento em 03.05.10).

Como é necessário para a solução de questões de fato o convencimento de quem tem a missão de prolatar a decisão, impõe-se lembrar a quem se dirige a prova, repetindo, como se faz muito amiúde, que o seu destinatário é o juiz. Mas qual juiz? Nesse ponto, revela-se um grave e perigoso equívoco do acórdão, pois se mostra, muito claramente, estar dando ao juiz de primeiro grau um poder absoluto quanto à definição do quadro fático, o que não tem qualquer base legal.

As atribuições que se destacam nessa parte do acórdão analisado são realmente próprias do juiz de primeiro grau, a quem se confere, segundo sua convicção, a discricionariedade de deferir a realização de outras provas ou, então, a obrigação de, sentindo a causa madura, proferir, desde logo, o julgamento de mérito, antecipadamente, ou seja, prescindindo das provas que poderiam ser realizadas em audiência. Até esse ponto está a constatação do óbvio, nada se revelando de errado no aresto. Todavia, o acórdão libera-se de considerar e, mais ainda, de avaliar a convicção do julgador, aceitando como boa e válida a conclusão a que ele chegou, pois, se ele se sentiu habilitado a julgar, teria cumprido o art. 330 do Código de Processo Civil, não se podendo falar em cerceamento de prova. Aí está o grande equívoco, pois cerceamento haverá se a opção do juiz não se mostrar correta.

Evidente que as referências que a lei faz ao juiz, no que tange à sua convicção, não se restringem ao de primeiro grau, mas ao julgador em geral. O convencimento que se reclama é o de quem tem o poder-dever de resolver o conflito de interesses submetido ao Judiciário, respeitadas as regras de hierarquia e presente a existência de instâncias que se sobrepõem. Logicamente, a persuasão do magistrado de primeiro grau fica submetida ao crivo dos de segunda instância, que têm o dever de, examinando as provas, nos limites da devolução que se lhes dá, conforme a natureza do recurso, externar a sua própria convicção. Poderia dizer-se que o convencimento do juiz de segunda instância é superior ao do de primeira. O juiz é o destinatário da prova, porém não só o de primeira instância: a prova que está nos autos, com a existência de recurso, passa a ter como destinatário o tribunal que, se entender diferentemente do modo como a entendeu antes o prolator da sentença, deve fazer prevalecer sua convicção, só porque é superior.

Tal se dá amplamente face ao recurso de apelação, pois se trata de recurso que pode devolver à segunda instância todas as questões, quer as de fato, quer as de direito, que foram decididas pela sentença, conforme os interesses e a postulação do recorrente. Da mesma forma se passa com o entendimento sobre o julgamento antecipado. O juiz de primeira instância pode convencer-se de que não mais precisa de provas e deve, nesse caso, julgar antecipadamente a causa: está vinculado a tanto. Todavia, isso não fecha a questão, pois essa sua convicção está sujeita a reexame, se recurso houver, pela segunda instância, que pode entender errada sua posição e, então, anular o julgamento antecipado, deferindo outras provas. Tanto pode ser obtido até por meio de ação rescisória. Portanto, o julgamento antecipado fica sujeito à censura do tribunal da apelação, como parece óbvio em um sistema hierarquicamente escalonado.

Confirmando o caminho eleito pelo acórdão, porém tornando o enfoque mais preocupante, há, ainda, a referência na decisão ao que se passa nos recursos constitucionais. Nesse sentido, proclamou-se como método de trabalho que "o recurso passa a ser apreciado nos limites especificados para satisfação do princípio tantum devolutum quantum appellatum, com reflexão, desde logo, sobre a diretriz sumular que não admite o reexame das provas em caso de recursos constitucionais". Realmente, os recursos especial e extraordinário não tocam com provas e fatos, não, porém, por restrição criada pelos seus julgamentos, mas pelo âmbito que lhes demarcou a Constituição, firmando seu cabimento na discussão sobre questões de direito Federal e, no extraordinário, constitucionais.

Evidente que se, na instância seguinte, não se poderá discutir fatos e provas, não se pode antecipar a restrição e vedar também sua apreciação no juízo da apelação. Semelhante colocação implica a criação de um autêntico juízo de instrução, de que não se cogita em nossa legislação e, mais gravemente ainda, sem direito a recurso.

Portanto, cumpre aos tribunais não declinarem de suas obrigações, de modo que, sendo juízo de fato e de direito, impõe-se a eles apreciar os fatos e o direito, sem antecipar restrições futuras ditadas por mais relevantes razões, que não lhes permitem precaver-se quanto ao risco de revisão de seus entendimentos.


Informações bibliográficas:

FORNACIARI Jr., Clito. A Reavaliação dos Fatos no Juízo da Apelação. Editora Magister - Porto Alegre - RS. Publicado em: 05 jul. 2011. Disponível em: <http://www.editoramagister.com/doutrina_ler.php?id=1031>. Acesso em: 26 set. 2011.
 

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